segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Documentário: Você pode dar um presunto legal.

www.armazemmemoria.com.br - link. salas de cinema - sala Carlos Marighella.
Documentario sobre o periodo da ditadura.

Ditadura Militar - Repressão.


01/12/2007

Os homens do porão
Financiados por empresários e lançando mão de meios brutais como a tortura, agentes da Oban conseguiram aniquilar todos os grupos armados que se opunham ao regime militar
Mariana Joffily

No dia 1° de julho de 1969, em agradável coquetel de drinques e salgadinhos, com a presença de autoridades civis e militares, foi inaugurada em São Paulo a Operação Bandeirante (Oban). Seu objetivo: destruir os grupos de esquerda que atuavam no país. Financiada por empresários ligados à FIESP e banqueiros que sentiam seus interesses ameaçados, a Oban agregou militares e membros de todas as forças policiais em um passo decisivo para o endurecimento do regime militar.

Encerrada a fase das grandes passeatas estudantis e das greves operárias anteriores ao Ato Institucional nº 5 (13 de dezembro de 1968), surgiam novas formas de luta contra o regime, promovidas por organizações clandestinas de esquerda. Algumas delas defendiam as ações armadas; outras não, mas todas tinham em comum a oposição ao governo e a defesa do socialismo como sistema político. Embora o novo órgão repressivo fosse composto por efetivos de origem policial e contasse, em seus quadros, com membros das três forças armadas, eram os oficiais do Exército que o comandavam. A convivência entre essas duas categorias – militares e policiais civis –, dentro da mesma Oban, nem sempre era fácil. Os policiais achavam que os militares eram brutos e inexperientes em investigações. Estes, por sua vez, consideravam os policiais corruptos e incapazes. Por que então reunir em um só órgão indivíduos com estilos de trabalho tão conflitantes? A explicação encontra-se na maneira pela qual o governo militar encarava a oposição naquela época.

O poder constituído lutava, então, contra um novo tipo de adversário: o “inimigo interno”, entidade nascida no âmbito da Guerra Fria, quando o bloco capitalista (liderado pelos EUA) opunha-se ao bloco socialista (liderado pela União Soviética) e uma nova modalidade de guerra, a “guerra revolucionária”, colocava em campos opostos cidadãos de um mesmo país. O "subversivo", ou "terrorista”, era considerado um elemento extremamente perigoso. Na visão do Exército, agia de “forma insidiosa” com o objetivo de desestabilizar, com suas “táticas traiçoeiras”, o regime militar. Tal perspectiva justificava a utilização de variados métodos de tortura nos interrogatórios. Ao capturar um suspeito, era preciso obter dele, o mais rápido possível, informações que levassem a outros militantes, estabelecendo-se a partir daí uma cadeia de prisões sucessivas.

A Oban especializou-se na captura e no interrogatório de suspeitos de subversão. Os agentes que lá trabalhavam seguiam uma orientação muito distinta da estabelecida em suas unidades de origem. Não podiam usar corte de cabelo militar e nem circular fardados. Utilizavam codinomes, para confundir as pessoas e impedir que fossem identificados. Deixavam seus cabelos e barbas crescerem e vestiam-se à paisana para que pudessem infiltrar-se em ambientes freqüentados por militantes de esquerda. Suas atividades eram sigilosas até para os familiares. Circulavam pela cidade em carros de “chapa fria”, isto é, com registro falso, razão pela qual muitas vezes eram detidos pelos próprios colegas, que os confundiam com os suspeitos. Justificava essas medidas o fato de estar diante de um inimigo incomum e, por isso, ter de agir como ele, de forma não convencional.

Ainda que lançando mão de meios irregulares, ilegais e quase sempre brutais, a Oban obteve êxito na sua missão. Em pouco tempo, as organizações de esquerda foram sendo desarticuladas e destruídas uma a uma. Com base na experiência paulista, o Exército decidiu não apenas consolidar sua presença e atuação, mas também, mudando o nome da organização, expandir suas atividades a outras capitais do país. Entre 1970 e 1974, foram instituídos os Destacamentos de Operações de Informação – Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), (que substituíram a Oban), em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Brasília, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Belém, Fortaleza e Porto Alegre. Ao DOI cabia investigar, prender, interrogar e analisar as informações. O CODI, dirigido pelo chefe do Estado-maior do Exército, era incumbido de planejar, controlar e assessorar as medidas de defesa interna, incluindo a "propaganda psicológica" – considerada também como importante arma de combate à guerra revolucionária. Sua principal função consistia em evitar que houvesse duplicidade de esforços, coordenando as ações dos diversos órgãos repressivos.

Os interrogatórios do DOI duravam noite e dia. Três turmas, compostas por seis agentes sob o comando de um oficial, revezavam-se em turnos de 24 horas, com 48 horas de folga. O ritmo de trabalho era intenso, conforme o relato de um ex-agente: "Eu ficava lá todo o tempo, não tinha vida pessoal, tudo o que fazia se relacionava à minha atuação no DOI”. O turno começava às oito horas da manhã, quando se dava a troca das equipes, e só terminava às sete horas do dia seguinte. Quem orientava os interrogatórios era a Sub-seção de Análise de Informações. Seus agentes tinham por missão ler atentamente os depoimentos e cotejá-los com informações recebidas de vários órgãos.

Um general chegou ao cinismo de afirmar, numa entrevista, que o nome do órgão era muito apropriado, porque "DOI" evoca dor. Embora não admitida oficialmente, a tortura era uma prática rotineira dentro do DOI. Os agentes aplicavam os castigos de forma profissional e “científica”. Médicos e enfermeiros avaliavam as condições físicas do interrogado, para saber se podiam sofrer novas sevícias. Os torturadores, por sua vez, tinham de se enquadrar a determinado um determinado perfil psicológico. Tinham de ser necessariamente violentos, mas sempre mantendo certa dose de calma e frieza, pois ao contrário perderiam a "superioridade" em relação ao interrogado. Enquanto os torturadores procuravam arrancar a "verdade" dos presos políticos, os agentes de análise iam avaliando, como se juntassem as peças de um quebra-cabeças, o teor das informações obtidas, para prender outro suspeito ou “estourar” um novo “aparelho”, como eram chamados os locais de moradia ou de encontros utilizados pelos ativistas de esquerda.

Às vezes, um e outro interrogado não resistia aos excessos do torturador e morria. Não podendo admitir que presos políticos perdessem a vida em dependências do Exército, os agentes do DOI apelavam para falsas versões: "morte em tiroteio", "morte por atropelamento", "suicídio" ou "tentativa de fuga" eram as mais comuns. Como esses argumentos foram ficando desgastados e pouco críveis, recorreu-se ao expediente do “desaparecimento”. A passagem do preso pelo DOI era oficialmente negada, e seu corpo enterrado como indigente, numa vala clandestina.

A Ação Libertadora Nacional (ALN), o Partido Comunista Revolucionário Brasileiro (PCBR), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucionária (VAR Palmares), o Partido Operário Comunista (POC) e muitas outras entidades de esquerda tiveram militantes assassinados. Mas, à medida que essas organizações eram desmanteladas, outros alvos tinham de ser estabelecidos para justificar a necessidade permanente de um órgão dessa natureza. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) mantivera durante o regime militar uma postura pacífica. A perseguição aos seus integrantes deu-se dentro de uma conjuntura de disputa interna dos militares entre os setores da "linha dura" – defensores do endurecimento do regime – e o governo do general Ernesto Geisel, que defendia uma abertura política "lenta e gradual".

Alguns dirigentes do partido já tinham sido assassinados em centros clandestinos de tortura, mas a opinião pública pouco soube a respeito. Como a conjuntura política mudou, o mesmo não ocorreu com a morte do jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog, no dia 25 de outubro de 1975, na sede do DOI, em São Paulo. O episódio provocou grande comoção nos meios intelectuais do país, fazendo eclodir uma crise entre o governo Geisel e os órgãos de repressão. Pouco tempo depois, um operário chamado Manoel Filho foi assassinado nas mesmas circunstâncias, o que levou à deposição, pelo presidente Geisel, do comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila Mello. Tal medida não impediu a ocorrência da chamada "chacina da Lapa”, em dezembro de 1976, quando três dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) foram assassinados durante uma operação conjunta realizada pelo DOI e outros órgãos da repressão.

Após esse episódio, embora seus agentes continuassem interrogando e torturando presos políticos, não se registraram mais vítimas fatais na sede do DOI paulista. Aos poucos, com o processo de redemocratização, o órgão foi sendo esvaziado de suas funções, com seus agentes sendo transferidos para outras unidades policiais ou militares. As atribuições do órgão foram em certa medida incorporadas pela Sub-seção de Operações do II Exército. No final do governo do general João Batista Figueiredo, o DOI foi oficialmente extinto. Alguns dos agentes passaram a promover, a partir daí, de forma clandestina mas muitas vezes com apoio de setores militares, atentados terroristas contra a população civil e entidades afinadas com os princípios da liberdade e dos direitos humanos, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Era uma tentativa desesperada de frear a abertura política, mas não tiveram êxito. Embora tenham vencido a batalha contra as esquerdas, não conseguiram impedir a retomada do projeto democrático, entrando para a história como personagens macabros de um tempo obscuro, cujas feridas ainda hoje não cicatrizaram inteiramente.

Mariana Joffily é doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese No centro da engrenagem: os interrogatórios da Oban e do DOI de São Paulo (1969-1975).

Os arquivos da repressão

Não se conhece a existência de arquivos específicos da Operação Bandeirante ou do DOI-CODI, embora esses órgãos tenham produzido farta documentação. Porém, é possível ter acesso aos documentos enviados pela Oban e pelo DOI ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) paulista. A esse organismo, que existia desde 1924, cabia a realização do interrogatório oficial – a partir dos dados já fornecidos pela Oban – e a montagem do inquérito a ser enviado à Justiça Militar. A série Dossiês (1940-1983), que compõe o acervo do DOPS São Paulo, contém, entre outros, o Dossiê 50-Z-9, constituído de 236 pastas. Nestas, encontra-se uma variedade muito grande de documentos, oriundos dos mais diversos órgãos de informação e repressão, arquivados dentro de uma lógica difícil de reconstituir. Essa miscelânea de documentos de toda ordem – "pedidos de busca", "fichas de antecedentes políticos", "boletins do SNI", "informes" (informação bruta), "informações" (informação confirmada), "fichas individuais de identificação de presos", relatórios, interrogatórios preliminares, recortes de jornal e outros – comprova a intensa troca de notícias e dados entre as mais diversas esferas do sistema repressivo.

Saiba mais - Bibliografia:

AQUINO, Maria Aparecida de; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Lemes de; SWENSSON JR., Walter Cruz (orgs.). A alimentação do Leviatã nos planos regional e nacional: mudanças no DEOPS/SP no pós 1964. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo/ Imprensa Oficial, 2002.

D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar. Espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Saiba mais - Filmes:

Pra Frente, Brasil – Roberto Farias – 1983
Que bom te ver viva – Lucia Murat – 1989

Saiba Mais - Sites:

Desaparecidos políticos: www.desaparecidospoliticos.org.br
Ditadura militar: www.gedm.ifcs.ufrj.br
Grupo Tortura Nunca Mais RJ: www.torturanuncamais-rj.org.br
Terrorismo Nunca Mais (site de ex-agentes de repressão): www.ternuma.com.br

Artigo da Revista de História da Biblioteca Nacional - Getulio Vargas.


Mal ou bem, só falam dele
Nos 50 anos que se passaram desde a sua morte, Getulio Vargas continuou influenciando o Brasil ao longo de diferentes momentos da vida pública
Marieta de Moraes Ferreira

O que é que Getulio tem? Como explicar que um líder falecido há mais de meio século continue exercendo forte influência no cenário político do país? Por que, afinal, sua figura é lembrada e relembrada – seja para o elogio, seja para a crítica – sempre que se discutem os grandes temas nacionais?

Em agosto de 2004, quando o suicídio de Getulio Vargas completou 50 anos, o Brasil assistiu a uma onda de celebrações em memória ao ex-presidente. Seminários, exposições, debates, construção de memoriais, artigos em revistas especializadas, cadernos especiais nos jornais, programas de rádio e televisão. O tom era francamente positivo, com as atenções voltadas para o seu segundo governo (1951-1954) – tempos de crescimento econômico e de implantação de políticas industriais que estimularam a ampliação do mercado de trabalho, o que possibilitou maior inclusão social. Tudo isso sob a vigência de normas democráticas. Nos dias de hoje, é compreensível que esse cenário provoque nostalgia naqueles que voltam o olhar para a década de 1950. Afinal, integrar o pleno funcionamento da democracia com a retomada do crescimento econômico e a diminuição das desigualdades sociais ainda é o grande desafio brasileiro.

Nem sempre a memória de Vargas recebeu tratamento tão nobre. Em primeiro lugar, porque se trata de um personagem bastante ambíguo – se por um lado contribuiu com inegáveis avanços para o desenvolvimento do país, por outro liderou um período autoritário e de repressão política em seu primeiro governo (1930-1945). Além disso, no último meio século o Brasil atravessou grandes mudanças políticas e institucionais. À experiência democrática iniciada em 1946 sucederam-se, a partir de 1964, vinte anos de ditadura militar, até que em 1985 se iniciasse novo processo de construção da democracia. Para cada um desses momentos veio à tona um Vargas diferente.

Agosto de 1964. Os dez anos do suicídio coincidem com o início de um novo regime: o golpe militar havia ocorrido em 31 de março daquele ano. Não poderia haver momento pior para o cultivo da memória de Vargas. Seu principal herdeiro, o presidente João Goulart, havia sido deposto, e um grande número de partidários do PTB e do PSD, partidos que lhe deram sustentação no segundo governo, foram afastados da vida pública. Os militares que tomaram o poder apresentavam-se como aqueles que iriam pôr fim à Era Vargas.

“A queda do império getuliano” foi o título de um conjunto de textos publicado no Jornal do Brasil no domingo, 23 de agosto de 1964. Três grandes reportagens procuravam enfocar sua trajetória sob diferentes ângulos. A primeira tratava de aspectos pessoais, da infância até a formação na Faculdade de Direito e o início da vida profissional como promotor. Ainda que de caráter pouco opinativo, o texto deixava entrever simpatia pelo personagem. A seguir apresentava-se uma cronologia comentada dos principais fatos políticos que contaram com a participação de Vargas, como a Revolução de 1930, o golpe de 1937, a deposição em 1945 e a volta ao poder pelas urnas em 1950. Por fim, a matéria intitulada “Memórias de agosto” fazia uma retrospectiva dos acontecimentos que antecederam o suicídio. Em destaque, o depoimento de Café Filho – vice-presidente de Vargas e seu sucessor, cujo breve governo se aproximou da oposicionista UDN –, que apenas relembrava os episódios, sem fazer qualquer julgamento: “Um ex-presidente não deve julgar um ex-presidente”. Talvez os ex-presidentes Kubitschek e Goulart não pensassem da mesma forma, mas eles estavam no exílio e não foram ouvidos.

Curioso é que, enquanto o golpe de 1964 foi visto por alguns como a “segunda morte de Vargas”, não demorou para que o governo adotasse um projeto autoritário que incluía exatamente as idéias de um Estado centralizado e de um sindicalismo corporativista – como se viu na tradição varguista. Por isso, quando chegou 1974, vigésimo aniversário de sua morte, a memória de Vargas ganhou outro tratamento. Na Câmara dos Deputados, os líderes dos novos partidos políticos (a Arena, de apoio ao governo, e o MDB, de oposição consentida) proferiram discursos em sua homenagem. Naquele teatro oficial, o tom era de ênfase no desenvolvimento econômico. Houve também algumas tímidas manifestações nas ruas do país. No Rio de Janeiro, elas se concentraram na praça da Cinelândia, em frente ao busto do presidente. Flores foram deixadas ao pé do monumento e duas mil cópias da carta-testamento foram distribuídas, muitas trazendo também os nomes de candidatos ao Congresso Nacional. Em Porto Alegre, o MDB homenageou Vargas com uma missa e uma concentração política diante do monumento à carta-testamento.

Já a imprensa não produziu apenas conteúdos positivos. Um artigo do jornalista Carlos Castello Branco, publicado em caderno especial do mesmo Jornal do Brasil, indica sua intenção crítica já pelo título: “A ditadura”. O autor rememora a censura praticada no Estado Novo, a ação repressora do governo diante das manifestações políticas e as prisões efetuadas. A figura que emerge é a do Vargas ditador, odiado por aqueles que defendiam a liberdade de expressão e a democracia. Para Castello Branco, a ditadura de Vargas propiciava a “corrupção sob todas as formas e se tornava ineficiente como fator de mobilização para o trabalho. (...) A ditadura é por definição centralista, mas no Brasil daqueles tempos, sem comunicações, havia, além de uma ditadura estadual, ditaduras culturais”. Qualquer semelhança com o contexto da época certamente não se deve a coincidência. Carlos Castello Branco se utiliza da condenação ao autoritarismo do Estado Novo para realçar as arbitrariedades do regime em vigor.

A partir do final de 1978, quando foi revogado o Ato Institucional n° 5, o mais drástico da legislação de exceção editada pelo regime militar, os ventos da abertura começaram a soprar com mais força. No ano seguinte, foi decretada a anistia política e a reforma partidária. Muitos exilados voltaram ao país, e em 1982 houve eleições diretas para governador. Em 1983, um outro tipo de comemoração foi preparado em torno de Vargas: celebrou-se o centenário de seu nascimento.

Os novos ares democráticos possibilitaram a realização de diversos debates sobre a Era Vargas. Pela primeira vez sua memória alimentava análises sobre a história recente do país, a partir de comparações entre diferentes períodos. A reestruturação dos partidos políticos desencadeada em 1979, por exemplo, foi discutida à luz do cenário pós-1945, quando o país também viveu um retorno à democracia. A diferença era que, no pós-Estado Novo, o getulismo e o antigetulismo eram determinantes no jogo político, enquanto no início dos anos 1980 não havia nenhum partido ou núcleo político declaradamente antigetulista. Ao contrário, o getulismo e sobretudo o trabalhismo passaram a ser utilizados como trunfo eleitoral por vários partidos. A exploração eleitoral voltava-se para uma parte específica da memória de Vargas: seu lado nacionalista e patriótico, tal qual exposto na carta-testamento.

De modo geral, o centenário de 1983 redimiu a figura de Getulio Vargas associando-a ao seu segundo governo, democrático e nacionalista. Ainda que alguns artigos mencionassem a face autoritária do líder, o foco não se fixava nessa questão. No ano seguinte, a comemoração dos 30 anos da morte de Vargas assumiu grande relevância no cenário político.

Assim que foi rejeitada a emenda das “Diretas Já”, a oposição lançou a candidatura de Tancredo Neves para a eleição indireta à Presidência. Político conciliador, Tancredo era governador de Minas Gerais. E ex-ministro de Vargas. Em agosto de 1984, o candidato da Aliança Democrática – formada pelo PMDB e pelos dissidentes do governo – juntou-se a Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT, herdeiro do antigo PTB), e a outros líderes em uma caravana rumo a São Borja (RS), cidade natal de Getulio, para prestar-lhe uma homenagem. A memória de Vargas ajudou a costurar a aliança entre PDT e PMDB. Unidos para reverenciar o passado, os dois partidos estavam de olho no futuro. “Getulio é realmente aquele divisor de águas, aquele que havia dado mais que a sua vida, havia dado todo o seu espírito a serviço da emancipação política, econômica e social do nosso povo. (...) Feliz a pátria que pode possuir homens públicos da sua estatura; feliz a nação que pode se honrar de ter tido um filho deste vulto e deste porte”, afirmou Tancredo Neves na ocasião. Brizola aproveitou para sugerir que, dali em diante, 24 de agosto fosse considerado o “Dia da Carta-testamento”. “Mais que a morte do presidente Getulio Vargas, a referida data assinala o lançamento daquele grande manifesto, cujo impacto e a posterior influência sobre os destinos do povo brasileiro são de uma profundidade que ainda não estamos em condição de avaliar. Divulgar o pensamento conclusivo do maior estadista deste século é uma questão cívica que interessa ao conjunto da Nação, com vistas às novas gerações”, discursou o gaúcho, governador do Rio.

A redemocratização do país não transcorreu sem percalços. Eleito presidente em janeiro de 1985, Tancredo morreu antes de tomar posse. No governo de seu sucessor, o vice José Sarney, todas as atenções se voltaram para o combate à inflação, que progredia em ritmo alarmante. A memória de Vargas também não navegaria em águas calmas.

“A Era Vargas acabou”. O mote, que reverbera o discurso dos militares do golpe de 1964, ressurgiu no início dos anos 1990. Era o momento de questionar o modelo de desenvolvimento econômico inaugurado por ele. Em 1994, analistas defendiam que a tendência mundial de abertura das economias, de privatização das empresas estatais, redução da ação do Estado, controle das contas públicas e ajuste fiscal resultaria, para o Brasil, na “terceira morte de Vargas”.
Este foi o título de um artigo assinado pelo cientista político Bolívar Lamounier naquele ano. Segundo o autor, com novas instituições, uma opinião pública livre e novos meios de comunicação, o país vivia um período de construção democrática, no qual desaparecia “a preocupação com a tutela das Forças Armadas sobre o sistema político”. Por isso seria possível “afirmar que o getulismo e o antigetulismo virulentos feneceram”. Outras críticas foram expressas na ocasião, como fez um editorial do Jornal do Brasil (25/8/1994) que apontava o corporativismo como herança negativa do varguismo enraizada na sociedade brasileira.

A oposição, por sua vez, tentava usar o mito a seu favor. Para a economista Maria da Conceição Tavares, o então candidato à Presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, era o principal herdeiro do trabalhismo de Vargas, enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), de Fernando Henrique Cardoso, poderia ser comparado à antiga UDN. Depois de eleito FHC, muitas vozes da oposição continuaram a apregoar os valores positivos de um certo legado varguista. Na luta contra as privatizações e no debate sobre a revisão da legislação trabalhista, a figura de Getulio era acionada para contestar os novos rumos tomados pelo país.

O embate ganhou novas feições em 2004. Desde o ano anterior, o país vivia sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, ex-líder operário que iniciou sua carreira política no final do regime militar, fundando o PT, e que jamais se declarou, ele próprio, herdeiro de alguém.
Contrariando certas expectativas de que o velho líder não mais despertaria grande interesse, naquele ano Vargas ressurgiu com grande vigor. Os principais jornais do país prepararam alentados cadernos especiais. As revistas de História dirigidas ao grande público saíram com fotos de Vargas estampadas na capa. Políticos e intelectuais dedicaram-se a discutir o assunto.

Para alguns analistas, a vitória de Lula na eleição de 2002 poderia representar a retomada de alguns ideais do nacional-estatismo. Cristóvam Buarque, ministro da Educação de Lula até janeiro de 2004, foi um dos que colocaram 1954 em pauta: “Apesar da revolução que significou a eleição de Lula e o governo do PT, 2004 ainda não deixou claro o novo rumo que o país precisa e espera desde 1954”. O ex-ministro não chegava a defender as opções de Vargas, mas destacava a necessidade de conhecê-las para criar um outro projeto nacional: “Ainda é tempo de mudar, de reorientar o Brasil. Lembrar o passado em geral é o melhor passo para começar a construir o futuro. O futuro da continuação do mesmo, dos últimos 50 anos, ou da construção do novo para o século XXI”, escreveu.

A idéia de “construção do novo” não era compartilhada por todos os setores do governo. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, criou o “Projeto Getulio Vargas”, que realizou seminários e produziu documentário, livro, exposição, show e memorial com a estátua de Vargas. O projeto manifestava a intenção de “contribuir para o fortalecimento da história [de Vargas], a valorização de seu legado e, sobretudo, o resgate da memória de importantes conquistas para o cidadão brasileiro”. Então presidente do banco, o economista Carlos Lessa defendia o nacionalismo e as políticas econômicas de Vargas, em oposição ao projeto neoliberal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Nas palavras de Lessa, “um presidente de alma seca achou que devíamos enterrar a Era Vargas. O que este presidente deixou de legado?” Reforçando a associação do novo presidente com o antigo líder trabalhista, afirmava que “a agenda recuperada de Vargas nos aponta uma continuidade entre o nacional-desenvolvimentismo dele e de sua época e o desenvolvimentismo nacional democrático de Lula”.

Poucas vozes eram exclusivamente de críticas a Vargas. Uma delas foi a do Instituto Liberal, de oposição ao governo Lula. Cândido Prunes, vice-presidente do Instituto, argumentava que o país cometia um erro ao esquecer “a truculência política da era Vargas”. E ia além: “Neste ano em que se registram os 50 anos do suicídio de Getulio Vargas, deveria se iniciar uma campanha pelo banimento do seu nome de todas as ruas, avenidas, praças e locais públicos. Foi ele um caudilho sanguinário que deveria merecer o opróbrio, como qualquer ditador. Ou então, por uma questão de justiça, comecemos a homenagear os militares ‘linha dura’ de 1964”.

Mas, em geral, as opiniões críticas não expressavam um antigetulismo radical. Mesmo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, em palestra no jornal O Globo, que suas declarações ao tomar posse em 1994, relativas ao “fim da Era Vargas”, foram mal interpretadas. Afirmou que nunca fora antigetulista, apenas achava que o modelo varguista havia se tornado obsoleto nos novos tempos. E tratou de elogiar o líder: “Getulio não era caudilho. Foi fruto das circunstâncias, mas tinha capacidade tática, malícia, visão”.

De lá para cá, grandes temas da Era Vargas continuam na ordem do dia, como o desenvolvimentismo, o nacionalismo e a intervenção do Estado na economia. Discussões que devem ganhar nova roupagem com a chegada das eleições. Não se sabe ainda como a figura do líder vai reaparecer, mas uma coisa é certa: 54 anos após 54, Getulio continua vivo. E bem na foto.

Marieta de Moraes Ferreira é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC).

Saiba Mais - Bibliografia:

BRANDI, Paulo. Da vida para a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
GOMES, Ângela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves; ALBERTI, Verena (coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/CPDOC, 2002.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
SILVA, Hélio. Um tiro no coração. (1a ed., 1980). Porto Alegre: L&PM, 2004.